Texto Luís Miguel Ricardo
Tem 53 anos, é natural de Angola e vive em Beja há 17 anos. Fez o Curso de Formação de Atores da Oficinactores (NBP-Lisboa, 2002) e ao longo do percurso ligado à representação foi realizando vários aperfeiçoamentos formativos, com destaque para Interpretação Teatro Técnicas Teatrais Desenvolvimento Pessoal; Laboratórios para Atores Impulsos e Estímulos; oficina “A minha Pátria é a Língua Portuguesa”; oficina “A Tarefa Criativa”.
Desde o ano de 2002 que desenvolve a sua atividade profissional como atriz de cinema, de teatro e de televisão, destacando-se a participação nas séries “Aqui não há quem viva”, “Morangos com açúcar” e “Uma aventura”.
Em 2006 entrou na Associação Lendias d´Encantar, tendo participado, como atriz, em nove produções, com destaque para o título “Sangue pisado”. Também como atriz, entre 2018 e 2023, participou em vários conteúdos da companhia Arte Pública, sob direção de Gisela Cañamero, de que são exemplos “E se isto fosse a sério”; “Ainda que pese”; “Loucas, não como as outras”; “O mundo pode encontrar a minha nudez”; “Fábulas fabulosas”.
Também é formadora na área das artes, com destaque para os projetos Ampliarte Cultura e Intervenção Social (CdA – Companhia de Atores, Carnaxide 2004-2006); Programa Escolhas – Projeto Inclusão Pela Arte (LdE, 2007); Beja Educa + Sucesso Escolar (Câmara Municipal de Beja – 2022/23). E também é dramaturga, cenógrafa, figurinista, encenadora e performer em produção baseada nas cinco cartas de soror Mariana Alcoforado, em “A pele e a flor de Mariana Alcoforado” e “Mariana e Noel”, criado para o Congresso Internacional – Festival B, 2019, Beja.Eis Sandra Maya na primeira pessoa!
Quando e como foi descoberta a vocação para a representação?
No princípio era o Verbo! Literalmente, foi assim que aconteceu comigo. Logo na primária era frequentemente escolhida para fazer a apresentação de pequenos textos que exigiam uma espécie de performance. Nitidamente, a narrativa surgiu antes da presença cénica e de qualquer consciência ou propensão para essa realidade que veio a acontecer mais tarde. Os anos foram passando e, já na preparatória, começo a perceber que este “estar como atriz ou performer” nas atividades ao longo do período escolar tinha um efeito de equilíbrio interno em mim. Esta maneira de estar na vida atiçava a minha vontade de viver. Era uma espécie de homeostase. E a propósito disto, não posso perder a oportunidade de elevar a arte, trazendo à conversa o neurologista e neurocientista António Damásio, cujos contributos fundamentais para a compreensão dos processos cerebrais subjacentes às emoções, aos sentimentos e à consciência são incomensuráveis. Ele afirma que os sentimentos “de dor, sofrimento ou prazer antecipado – foram as forças motrizes primordiais do empreendimento cultural, os mecanismos que impulsionaram o intelecto humano na direção da cultura”, (em A Estranha Ordem das Coisas). E no teatro é isso que fazemos. O teatro tem um poder transformador. O cérebro mágico é o nosso primeiro terapeuta. E isto funciona para nós atores e para os espectadores. Mas só muito mais tarde é que reuni condições para fazer a minha formação enquanto atriz, e encarar esta profissão como a certa para mim. E foi então, aos 30 anos, que abandonei o meu cargo numa multinacional e, desde então, nunca mais parei. Atrizes como Scarlett O´Hara, Ingrid Bergman e Marlene Dietrich são as minhas musas inspiradoras.
Dos vários registos ligados ao universo da representação predomina alguma preferência?
Na verdade, experimentar os vários universos engrandece qualquer artista e é um privilégio imenso. E devemos fazê-lo de forma rotativa. Faz-nos perceber os vários ângulos e acumular créditos na hora de colocar a “mão na massa”. Contudo, diria que, como atriz, me sinto mais completa pelo facto de este ser um processo libertador. Encarnar o personagem é literal. Há sempre uma matéria biológica nova que funciona como um potente acionador de processos neuro-plásticos. Resumindo, há sempre um trabalho emocional envolvido, do qual eu tiro partido para o meu quotidiano, para além do efeito no espetador, que se pretende que seja sempre positivo.
Que papel desempenha o Alentejo na carreira artística de Sandra Maya?
O Alentejo era um projeto para ter durado cerca de dois anos e, afinal, fiquei, e já lá vão 17. Infelizmente, não fiquei pelas oportunidades de trabalho. Tem sido duro! Muito duro! É preciso fazer-se mais pela arte – concretamente pelo teatro, de forma a manter uma continuidade nos projetos, disciplinar o público, sem andar numa montanha-russa, criando rotinas de consumo periódico de espetáculos feitos “pelos de cá” e, consequentemente, garantir o ganha-pão dos atores e encenadores. A geografia é apaixonante, mas só isso não chega!
Dos trabalhos desenvolvidos ao longo da carreira há alguns que tenham sido mais marcantes?
Um dos trabalhos mais empolgantes que fiz foi a série televisiva “Aqui não há quem viva”. Como experiência televisiva, proporcionou-me muito conhecimento. No teatro, o espetáculo “Sangue pisado” deu-me a oportunidade de perceber como um bom encenador trabalha os seus atores. Esta característica é extensível a Gisela Cañamero, com quem tenho trabalho desde 2018. O espetáculo “Loucas, não como as outras”, ensaiado por esta última, foi um dos maiores desafios dos últimos seis anos. O espetáculo “As lágrimas amargas de Petra Von Kant” foi uma catarse indiscritível. Entretanto, muito marcante por diversos motivos foi o monólogo “A pele e a flor de Mariana Alcoforado”, que produzi e apresentei em 2019.
Alguns momentos inusitados experimentados ao longo do percurso artístico?
Podia ficar horas a descrever episódios engraçados, caricatos, incríveis que aconteceram durante estes anos de trabalho como atriz. Mas vou cingir-me a um que foi sobretudo surreal. No “Aqui não há quem viva” fiz o papel de inspetora do SEF [Serviço de Estrangeiros e Fronteiras] e, no cumprimento do dever, acabo a fazer um parto a uma das imigrantes ilegais. Todos de volta da parturiente, inquilinos, administradores, imigrantes, eu agachada diante da grávida a fazer o trabalho de parteira e o Nicolau Breyner atrás de mim a simular um momento de sexo puro e duro. Isto deu origem ao corte da cena duas vezes e só à terceira é que ficou bem, sobretudo, porque não fazia parte da história. Este momento foi improvisado pelo Nicolau. Esta foi a parte engraçada deste dia. Mas não acabou por aqui. Entretanto instalou-se o medo e o terror. No fim deste dia de gravações, quando voltava a casa, parei numa estação de serviço para beber um café e uma senhora, perfeitamente desconhecida, entra em trabalho de parto à minha frente e pede-me ajuda. Não tenho palavras suficientes para descrever o sentimento que se seguiu.
Que opinião tem sobre o universo da representação em Portugal?
Os últimos anos têm sido riquíssimos do ponto de vista da produção televisiva. Devo dizer que os nossos atores têm demonstrado estar mais apurados, e muitos resultaram em agradáveis surpresas. A tendência é manter este crescimento, incluindo projetos internacionais. O teatro também está a acontecer um pouco por todo o País. Contudo, acredito que só quando os municípios perceberem e assumirem que têm uma responsabilidade enorme no que toca a apoiar a cultura de forma concertada, contínua e com a prata da casa, é que surgirão resultados reais provenientes desta profissão nobre que pretende, através da arte, instalar o hábito de pensar, sonhar e, com isso, colocar todos e cada um a olhar para dentro de si, para depois cumprirmos capazmente o papel a que estamos destinados, que é viver em sociedade. Quanto aos grupos de teatro, se funcionarem com o espírito de “umbiguismo” e de imediatismo, e persistirem em desvirtuar a verdadeira função do teatro, então serão apenas microempresas que vão dando para os gastos, mal e parcamente, e esgotar-se-ão sem que fique um património, um testemunho da sua obra!
Para lá do glamour dos palcos como são os bastidores do teatro no território?
Os bastidores do teatro em Portugal são o reflexo da forma como o Estado trata a cultura. Ponto! Todos sabemos que o Estado trata a cultura como um não assunto. E não é! No teatro continua a haver muito trabalho a fazer, sobretudo, no que diz respeito à forma como se trata a profissão. Os atores têm de ser tratados com dignidade e não podem continuar a ser convidados para dar um jeitinho aqui ou ali. O teatro tem um poder transformador, não é um passatempo sem consequências. E, infelizmente, há representantes de companhias de teatro que nada mais fazem a não ser masturbações intelectuais com dinheiros de apoios que vão conseguindo aqui ou ali. E quando a torneira fecha, avançam para o despedimento coletivo, porque os seus planos de atividade não são consistentes. Obviamente que não estão verdadeiramente implicados em defender a profissão, e tudo o que projetam está assente em nuvens passageiras e de satisfação imediata. Entretanto, porque é conveniente, as autarquias vão dançando ao som da música, convidando companhias de teatro de fora, obviamente de topo, para fazerem o brilharete, e depois, quando se vão embora, caímos de novo num buraco negro, porque não há trabalho contínuo e consistente.
Que sonhos artísticos moram em Sandra Maya?
Sonho apaixonadamente em criar um projeto que seja uma “Academia de Artes”, onde o teatro será o elemento agregador e central.